quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

a quitinete, parte um

por guilherme bernardes

eu acordo e já são quatro da tarde. eu queria me lembrar melhor da noite anterior. tudo que eu sei é que bebi demais e que nunca tinha visto essa mulher antes. a sede está insaciável. os pensamentos são curtos, rápidos. tudo se resolve por instinto. eu vou até a cozinha e tomo, praticamente, a jarra inteira de água. começo a olhar os imãs na geladeira de entrega de comida e a fome começa a bater. eu comeria três esfihas do come-come e tomaria umas três gasosas pra me satisfazer.

deixo um bilhete do lado da cama dizendo que já voltava. não tenho medo que ela me roube. não tenho nada em casa a não ser uma tevê quebrada, roupas velhas, duas panelas, um prato, um copo de plástico e um eletrodoméstico que serve de geladeira, pia e fogão. meus livros e discos são todos comprados em sebos. e não tenho nenhuma grande raridade.

desço as escadas e vejo o terminal guadalupe do jeito que sempre foi. aquele tipo de gente que os burgueses do batel fecham o vidro quando se veem obrigados a passar por ali. vou andando um pouco mais até chegar à rua xv. dou uma olhada na reitoria vazia de janeiro e vou logo comer. apesar da fome, comi só uma esfiha e uma gasosa, porque só tinha cinco reais no bolso.

fico matando um tempo por lá, sozinho. desde que a tal mulher não me tranque pra fora de casa, eu não tenho pressa. e é bem provável que eu volte lá e ela ainda esteja dormindo. pago a conta e saio devagar. no meio do caminho um mendigo me para na rua e me diz:

– eu poderia falar pra você que quero comprar leitinho pra criança, mas acho que aqui ninguém é trouxa, tá ligado? eu quero mesmo é juntar dinheiro pra comprar uma cachaça.

– poxa, cara. desculpa, mesmo, mas eu não tenho nada... – eu respondo.

– é... eu também.

sempre me chamou a atenção como os mendigos sempre conversam comigo. posso estar acompanhado de vinte pessoas – e já aconteceu de estar – e, mesmo assim, ele vir falar só comigo. eu não sei se eles acham que eu entendo a situação deles, se eles acham que eu já passei por isso ou se acham que poderia estar passando. mas é incomum, visto que, a maioria das pessoas que eu conheço, dizem que eu tenho uma cara de desdém e um ar de superior. acham-me extremamente arrogante. talvez eu o seja.

quando eu abro a porta, vejo apenas o colchão. não tenho certeza se ela foi embora ou se só está no banheiro. grito “ei!” pra ver se alguém responde. ouço um “ei!” de volta. ela ficou. elas nunca ficam. será que ela está pior do que eu? depois da descarga, um clique da porta sendo destrancada e eu a vejo. nua.

– olá... – eu digo.

– me ajude a achar minha calcinha e eu já vou embora.

– calma, não precisa ter tanta pressa. teria te levado junto, mas não queria te acordar. você mora aqui por perto?

– pago aluguel numa quitinete ali na presidente faria.

– ah... perto. então... desculpa, mas...qual seu nome, mesmo?

– mônica.

– eu sou giovanni.

– eu sei quem você é, berdinski.

ela deu um sorriso irônico. baixou a cabeça um pouco pra acender um cigarro que eu tinha num maço do lado do colchão. ainda lhe restava um pouco do batom vermelho que ela estava usando na noite anterior. não tinha notado como ela era bonita até que começasse a fumar. comecei a acompanhar o movimento de sua mão, que descia até a cintura e voltava à sua boca, reparando em suas curvas no caminho de descida e de subida. ela não era muito encorpada. não tinha coxas grossas ou um quadril muito largo. era bem magra. eu preferia assim. seu cabelo era curto e ainda estava bem despenteado depois de acordar.

perdi a noção de quanto tempo fiquei a admirando. quando percebi, ela já tinha terminado o cigarro e ninguém tinha dito nada ainda. foi quando comecei a divagar sobre o que eu poderia ter dito a ela. será que eu entreguei o jogo? eu, definitivamente, tenho que aprender a me controlar melhor com a bebida. andei em sua direção e peguei um cigarro pra mim também. tentei pegar o isqueiro, mas ela quis acender pra mim. virei as costas, dei alguns passos. não poderia andar muito, minha quitinete era realmente pequena.

– e o que mais você sabe?

ela se abaixa e começa a revirar os lençóis e as roupas do chão. procurando sua calcinha, eu imagino. ela põe seu vestido, calça seu par de saltos, agarra sua bolsa e fica de pé novamente. olha fixamente em meus olhos. eles eram castanhos. e queriam dizer alguma coisa. seria ótimo que a ressaca não estivesse me dando uma tremenda dor de cabeça, caso contrário, eu saberia muito bem ler o que ela diz com um olhar.

– sei que não vim de calcinha. e que você já era.

ela saca uma arma de dentro da bolsa e, antes que eu pudesse pensar qualquer coisa, atira.