domingo, 30 de outubro de 2011

o dia do junkie

por guilherme bernardes

fazia já uma ou duas semanas que eu tinha dispensado a samanta. tive que ouvir alguns sermões de amigos de como eu tinha sido um babaca e tudo mais. outros não se importavam e riam comigo da situação toda. eu soube por outras pessoas que ela estava sofrendo, mas eu não poderia fazer nada. certeza que ela sofreu bem menos tendo sido largada antes do que ela queria. a gente tentou continuar amigos, pra não separar a galera. já era verão, saíamos pra encher a cara quase todos os dias.

saí da psicóloga que minha mãe me fazia ir porque eu estava bebendo, andei uns seis quilômetros pra chegar na meia praia e encontrar os amigos e fomos logo comprar as bebidas. acabou sendo uma big apple. a gente tava apaixonado por esse troço. depois que acabou pegamos uma joinville de maracujá. era o que a gente mais tinha bebido naquele ano que passara. era no mínimo uma por ensaio todo domingo. eu e o magrão fomos os únicos que bebemos de verdade. ficamos muito loucos. o ricardo e o leonardo deram só uns goles. a gabi tava lá com a samanta que também deu uns goles. mas pra ela já foi o suficiente pra ficar bem fora de si.

a gente se achava o máximo por beber tanto mas ainda aguentar e ficou rindo de como ela era fraca. sei lá se ela tentou beber porque estava sofrendo. é capaz. ela não se aguentava em pé. tava feia, a coisa. eu tentei ajudá-la, mas ao sentir minha mão encostando nela não exitou e me deu um tapa na cara.

foi um belo tapa. todo mundo se espantou. mas ela deve ter sentido aquela força ressentida, aquele ódio, talvez, bem direcionado. com certeza aquilo foi necessário pra ela. pode ter se arrependido depois, mas na hora, a vingança contra o filho da puta que a fez sofrer era mais importante. convenhamos: eu merecia. hoje sei disso. mas logo após aquele tapa, não reagi bem.

eu fiquei muito puto. não tava acreditando na audácia daquela menina. não me passou pela cabeça revidar, mas eu não tava achando aquilo certo. o magrão me levou pra longe, ela continuava a chorar e a me mandar embora. a gente tava numa viela que dava pra praia. conversei com o magrão quando já estávamos afastados.

- puta que pariu, cara! nunca tento ajudar ninguém, aí quando tento a mina me faz uma coisa dessas?! ah, vai se fuder!

o magrão realmente não me ajudou tanto nesse dia. ele até me deixou mais puto. hoje acho engraçado. na hora não foi.

- giovanni, a culpa é toda sua. - ele tava tão torto quanto eu, nem sei se sabia o que tava rolando na real. - você não tinha nada que tentar ajudar ela.

foi uma das vezes que eu mais bebi e uma das poucas que fiquei violento. o leronardo apareceu enquanto eu tava vomitando no lugar que eu tava com o magrão e começou a rir. não cutuque onça com vara curta, porra!

- tá rindo do que, seu merda?! cala a boca ou eu vou aí e quebro tua cara! - acho que ele continuou rindo, não lembro. foi inconveniente. rir depois, quando se está contando a história é uma coisa, mas rir enquanto o cara tá lá, limpando vômito com a mão, puto da cara, querendo descontar em alguma coisa, não, né?

acho que foi o magrão que fez ele sair dali. eu tinha comprado meus óculos tinham recém feito dois meses. pra mim tava tudo igual com ou sem. era embaçado, dobrado, turvo. tirei pra gorfar e pus em algum lugar ali perto. não lembrei de pegar.

volta e meia eu levantava e olhava como tava a situação lá na praia. a gabi ainda consolava a samanta e o leonardo e o ricardo conversavam. provavelmente como tudo isso tava sendo ridículo. meu pai me ligou dizendo que ia me buscar. eu ia dizer o quê? eu tinha quinze anos ainda. falei onde tava e tentei me recompor até que ele aparecesse. não funcionou. entrei no carro tão embriagado quanto estava na rua. ele ficou puto. falou alguma coisa sobre me por de castigo e eu falei pra ele que isso não serve pra nada, é só uma coisa que os pais fazem pra aumentar o próprio ego e achar que estão educando seus filhos. ah, ele não gostou nada de ouvir isso, também.

ele tava com a namorada em algum lugar, só os dois. e de certo queriam voltar pra lá. ele me deixou na casa da sogra dele, que não era muito longe dali. minhas irmãs de criação estavam lá. a mais velha tava achando uma estupidez só. a mais nova tava achando ou engraçado ou muito legal essa minha "rebeldia". fiquei lá um tempo morgando no sofá, comendo um sanduíche de atum e dando uma volta de um lado pro outro no quintal da frente. até que tive a ideia de simplesmente me mandar e beber mais um pouco.

o portão estava, obviamente, trancado. eu ainda tinha dificuldades de me manter em pé, mas decidi arriscar: fui pular o portão. tinham uns apoios na parede, não foi assim tão difícil. engraçado foi ninguém ter notado. comecei a andar pela rua e a ligar pros meus amigos e pedir pra me encontrarem. começou a chover, também. no verão sempre chove depois que escurece.

- ricardo! me encontra em algum lugar, cara! quero beber todas! eu sempre fui um filho muito bonzinho, nunca fiz nada de errado. chega dessa merda! quero ser um problema. e quero que eles se acostumem que é isso que eu sou. porque sabe, né? se você sempre faz tudo certo, quando faz qualquer merdinha, a menor que seja, já vira um escândalo. então o negócio é fazer sempre, que daí só dizem "ah, ele é assim mesmo..."

sei lá o que ele me disse. deve ter dito pra eu ir pra casa. é a cara dele falar isso. liguei pro magrão. a chuva foi aumentando. a sensação era aquela mesmo, de estar quebrando as regras por simplesmente estar mostrando quem eu realmente era: o desgraçado que pregava a total falta de sentimentos e que só ligava pra si mesmo que minha família não tinha ideia que eu era.

o magrão acabou me achando com a roupa encharcada um tempo depois, com o resto do vinho na mochila dele e nossos cigarros. a essa altura já tinham dado conta da minha ausência e avisado meu pai que não parava de me ligar pra perguntar onde eu estava. eu só ignorava. talvez eu tenha percebido a besteira e por isso atendido. não falei direito, quem falou foi o magrão. ele que contou onde a gente tava. meu pai chegou e tentou falar comigo e eu não dei muita bola. foi perguntar pro magrão o que tinha acontecido. enquanto eu via eles conversando, abri a mochila dele, peguei mais um cigarro e acendi. ele viu e veio correndo tirá-lo da minha mão.

meu pai acabou me convencendo a ir pra casa. no caminho, aquele clima pesado. eu achando que estava certo, que eu devia mesmo era tocar o foda-se, e meu pai provavelmente se perguntando o que ele fez de errado pra eu estar assim. a culpa não é dele. acho que hoje ele sabe. eu queria uma independência que eu não poderia ter. eu não trabalhava, não me virava sozinho. o dinheiro do meu trago vinha todo do bolso dele. mas você não enxerga isso nessa idade.

contei pra ele toda a história de não ter sentimentos, de como eu só conseguia me sentir vivo se eu estivesse bêbado ou fumando um cigarro. ele se espantou. logo estavam os dois chorando. eu por perceber a cagada toda que era aquilo e ele por ouvir o próprio filho dizendo isso. o pior era que eu não queria ceder. continuava a filosofar coisas de total desapego.

- deixa isso pra lá, zé. daqui a uns anos, quando eu estiver todo fodido por causa disso, tu vai poder olhar pra mim e dizer "eu te avisei" e o gosto de estar certo vai ser muito bom.

mostrei um música que escrevi que dizia ser sobre os meus pais. ele ficou chocado. tentei dizer que não era assim tão ruim quanto parecia, mas era. eu achava que era, pelo menos. os dois estavam cansados e foram dormir. não sei que horas eram, não sei por quanto tempo. mas a manhã seguinte foi chega de ressaca física e moral. me dar conta que perdi os óculos também foi chato. a gente tentou conversar melhor, comigo sóbrio, dessa vez, mas ficou uma coisa meio só ele falando e eu concordando. eu tinha noção do erro. mas dizia pra mim mesmo que erros a gente sempre faz e não tem porque se achar tão um bosta por isso.

fiquei de castigo, de fato. sendo aquilo pra satisfazer algum ego ou não. demorei pra recuperar a confiança do meu pai. mas o mais engraçado foi eu ter conhecido a pessoa responsável por em fazer desistir da ideia de não ter sentimentos e de ser um problema exatamente no dia seguinte a esse episódio todo. uma lição bem evidente disso é: se você levar um tapa, primeiro pare e pense se você não o mereceu. depois pense no que fazer quanto a isso.