quinta-feira, 31 de março de 2011

o homem-cidade

por guilherme bernardes

sentado sozinho. sete da manhã. reitoria vazia. pensativo, até demais, ele fica. olha para o movimento da rua com os olhos que doem por causa do pouco sono. eles querem fechar novamente, mas ele não tem para onde ir.

a opção foi dele de ficar assim. a culpa corrói seu corpo que só se lembra da bebida como solução. "de novo, não!", foi dito. os olhos se arregalaram, a respiração ficou pesada e o coração bateu rápido. e a culpa crescendo crescendo crescendo...

vontade de sumir, desaparecer. e assim transparecer toda a covardia que ele luta diariamente para manter escondida. o céu cinza, mas sem chuva, não condiz com sua realidade neste dia. hoje, há uma tempestade dentro dele. hoje os demônios o perseguem em cada esquina para lembrá-lo que a culpa é só dele e de mais ninguém.

ele, que sempre é calmo, não consegue esconder essa angústia. pode até não contar pra ninguém o que aconteceu, mas talvez não consiga mentir se lhe perguntarem "tudo bem?". imagina se tudo não passa de um sonho. percebe que realmente, não. numa certeza que só faz sentido em sua cabeça. a mesma que crê em ideais utópicos e na bondade dos homens. sozinho, se dá conta da própria ingenuidade.

treme de frio e vê o céu a clarear. acha a saída para aliviar a tensão na escrita. não adianta muito. "pedir desculpas não vai ajudar nada.", ele sabe. o que ele deveria fazer, então? sorrir e agir como se nada tivesse acontecido? ah! por favor! assumir um erro é, de fato, nobre - por muito tempo ele pensou que fosse apenas fraqueza, talvez ainda tenha dúvidas. ainda se não houvesse solução... não vai acontecer nada, isso é certo, mas pelo resto de suas vidas seguirá a lembrança e uma lição.

ele poderia muito fumar um cigarro. iria relaxar, querendo ou não. engraçado como ele tende fácil aos vícios. começa a sentir vergonha. não que a culpa tenha sumido, mas, agora, outro sentimento de inferioridade aparece. vergonha de sua imaturidade, vergonha de sua falta de cuidado. vergonha de sua existência. o cigarro não vai chegar perto dele. não dessa vez.

há muito em jogo, pelo menos pra ele. dois anos, em sua maioria, felizes, cheios de transformações, de crescimento individual. dois anos que o "junkie sem sentimentos" encontrou a salvação e nela se segurou com todas as forças. o amor que surgiu e o uniu com alguém tão perfeito à seus olhos. ele sabe que não é bem assim. ela tem defeitos, claro, mas que ficam pequenos, se lembrada a alegria de estar com ela.

agora, ele espera, ansioso, que isso se esqueça. ou que ao menos seja posto de lado. a culpa, a vergonha, a consciência pesada já lhe parecem castigo suficiente. ele é, com certeza, uma criança. um babaca. hoje não há festa que o anime. hoje ele é curitiba. fria, cinza e mal-humorada. queria ele saber, também, o que essa cidade fez de tão errado pra ficar assim.

terça-feira, 29 de março de 2011

o teste

por guilherme bernardes

eu achei que seria o dia que eu realmente começaria a ter aulas na faculdade. há uma certa expectativa, não nego. mas também acho bom ainda não precisar me esforçar tanto. mesmo assim, antes de ir até a reitoria e só ter uma “aula” de quase duas horas, eu tinha preparado o meu celular pra despertar e eu não queria perder a hora. quando escuto o bipe do começo de “fantasminha” sei que é hora de levantar. mas eu sempre me enrolo mais um pouco até realmente me sentir acordado. tomo um banho, escovo os dentes, mato um tempo fazendo nada e saio.

no caminho, vou olhando pras pessoas que estão nos pontos de ônibus normais. elas, que acabaram de sair do colégio. me senti bem sabendo que, pra mim, aquilo já tinha acabado. tenho quase um quilômetro de divagações e devaneios até a estação tubo do inter dois. e aquele desgraçado chegou bem junto comigo. não dá pra saber se virá um logo depois ou se aquele será o único a passar por horas. a passagem aumentou. participei de algumas manifestações contra isso antes do aumento. realmente não sei como ficarão as coisas agora. bem, o fato é que tive que correr pra alcançá-lo e entrei ofegante no ônibus. estava de fones e não sabia o quão alto minha respiração estava, mas não gostei da sensação de ter todos me olhando por ser o único que entrou vindo daquele tubo.

desembarquei no terminal seguinte e fiz minha conexão. não tinha almoçado ainda, por isso fui no érreu quando cheguei. conversei com um veterano sobre o meu carnaval no psicodália. foi realmente muito bom. se não superou, ao menos atingiu as expectativas. apesar de ainda sentir algumas dores causadas pelo colchão de ar pouco confortável. era uma sensação de verdadeira liberdade. um desapego de tecnologias supérfluas que nos acostumamos a não viver sem. além da fuga do carnaval pelo qual o brasil é conhecido, e que eu nunca consegui me identificar.

vagneeeer!

subi até o sexto andar para, finalmente, ter aula. mas não foi bem assim. foi só uma “apresentação”. e uma pequena discussão sobre alguns conceitos. assim que acabou, fui correndo comprar um café. estava caindo de sono. fiquei lá embaixo matando um tempo com algumas colegas, quando nos vimos em cima da hora pra próxima aula. pegamos o elevador correndo. aquele elevador é fascinante. ele te dá um frio na barriga quando desce e, quando sobe, você fica imaginando se ele aguenta. e às vezes te dá a nítida impressão que está na verdade descendo. você só acredita quando se vê no andar de cima. quando chegamos, nada do professor. esperamos algum tempo e nada. desistimos e decidimos todos irmos pro bar.

lá, encontramos alguns veteranos e nos juntamos à mesa. a cerveja vai chegando e vamos bebendo. eu tinha dito que não ia beber. nunca cumpro minha palavra pra essas coisas. o pedro me ligou uma hora pra me contar novidades da banda e perguntou aonde eu estava, por causa do barulho. “parceria”, eu respondi. “porra! mas você não sai daí!” disse ele. é inexplicável. nós simplesmente vamos. é automático. é uma busca sem fim que o ser humano tem por diminuir/aumentar sua percepção das cosias. eu gosto de lá. mas queria mudar de ares de vez em quando.

depois de um tempo sentado, um pessoal, os fumantes, vão pra fora do bar pra acenderem seus cigarros. ficamos quatro pessoas na mesa, de um grupo de vinte. sinto falta de participar dessas rodinhas mais externas do bar, no tempo que eu fumava poderia. hoje parece estranho. mesmo assim, decido ir. até porque o papo na mesa não era algo que eu entendia ou gostasse muito, diferentemente dos outros três caras que dissertavam com empolgação sobre as múltiplas interpretações que cada povo do senhor dos anéis representava.

o tempo vai passando e algumas pessoas começam a ir embora. achei que eu, novamente, seria o último calouro a ir embora. foi quando minha namorada me ligou dizendo que já estava em casa. meu companheiro de mesa tinha ido ao banheiro. tínhamos acabado sozinhos na mesa e num papo muito interessante sobre literatura curitibana. e como era ruim que pouca gente hoje gostasse de trevisan e leminski. sobre minha paixão pelo minimalismo. em como dizer o máximo usando o mínimo. contos de uma linha ou hai kais que são puros espirros criativos. eles simplesmente saem, e, com certeza, você não consegue fazê-los de olhos abertos. o esperei voltar pra avisar que iria embora. quando ele volta, uma mulher se aproxima da nossa mesa. ela olha pra mim e diz:

“oi, você estaria interessado em participar de um teste pra um comercial? estamos procurando por barbudos.”

“quando?”, eu respondo.

“hoje. até às dezenove horas. lá no juvevê. o cachê é de dois mil reais.”

anoto o endereço e vou até minha namorada pra chamá-la a me acompanhar. agora pensando, foi um tipo de coisa bem espontânea que aconteceu. algo que ela tinha reclamado antes, de como eu sou metódico. acho que foi uma experiência bacana acontecer isso do nada e eu a levar comigo.

depois de uma bela caminhada, conseguimos achar o lugar pedindo informação apenas uma vez. o lugar não parecia em nada com uma produtora por fora. logo na entrada, uma mulher com um papel a sua frente faz anotações. olho as pessoas já presentes. eu, definitivamente, era o menos barbudo dos barbudos ali. e as mulheres e os outros homens (sem barba) com aquela cara de espera. alguns ali tentavam ganhar a vida com aquilo. tudo que eles querem é uma grande chance. ela pergunta meu nome. “giovanni berdinski”, eu digo. pergunta também minha idade e altura e se vim de alguma agência. assino um contrato/questionário que respondo tudo não, já que nunca nem cheguei perto de trabalhar com isso.

e começa a minha espera. meio desnecessária foi a maquiagem. não fez diferença alguma. li o roteiro grudado na parede várias vezes. era um comercial de celular. uma cópia da claro do plano infinity da tim. mas tudo bem. a maquiadora me disse que o cachê era, na verdade, de três mil reais.

recebemos instruções de que teríamos de fingir que estamos recebendo uma ligação. ok. parece fácil. penso sobre o que posso falar. decido encenar um convite do pedro me chamando pro bar. soaria bem natural. era mais fácil eu falar sobre algo que eu sabia. depois, chega minha vez. ponho uma máscara de mergulho e enceno. a mulher pede que eu faça parecer com alguém que mora longe, não alguém que verei em breve. precisei pensar rápido. invento que o pedro foi pro psicodália e eu, não. a primeira vez com essa história ficou boa. a tal diretora até me elogiou. mas a maldita máscara caiu completamente. e na hora de pô-la novamente deu trabalho. fiz ainda mais uma vez. não ficou tão boa quando a outra. pareceu que fiquei tempo de mais só ouvindo. fingir ouvir é fácil. você tem que dar continuidade. mas, pelo menos, não tive problemas com a máscara.

saí do estúdio e fui encontrar minha namorada. estava lá fora conversando com uns atores. depois de um papo rápido vamos embora nós também, procurando o caminho certo pra voltar. me perdi por alguns instantes, mas seguindo meu instinto chegamos no lugar que queríamos e, de lá, o caminho era fácil. passei um tempo na casa dela, pois não havia a visto direito, até que ficou tarde pra ir pra casa. eu ainda tinha dois ônibus pra pegar.

quarta-feira, 9 de março de 2011

a quitinete, parte dois

por guilherme bernardes

aquele era o dia. dali a algumas horas tudo estaria acabado. precisava escolher um vestido atraente e me maquiar bem. olhei o movimento da rua. vi o santa cândida passar e, por coincidência, vi ele atravessando a rua. tudo tinha que dar certo, afinal, foram semanas planejando, me fingindo passar por uma qualquer. mas me confortava saber que tudo teria seu fim muito em breve.

o relógio marcava sete horas. era terça-feira, mas sempre há algo rolando nos bares por aqui. sabia da rotina desse cara. ele era, na verdade, bem previsível. a cerveja era barata no chinasky e tinha blues no blues velvet. ele sempre ia. decidi segui-lo e ver se ele notava alguma coisa. como esperado, ele já estava lá. e sozinho. bebeu quatro ou cinco garrafas e foi pagar a conta. agora já eram onze horas.

no outro bar, ele sentou no sofá e ficou lá pensando. três pessoas apareceram e o cumprimentaram. ele já estava bem alterado. foi até o balcão e pegou sua primeira double vodka da noite. ele realmente sentia o blues. aquela música estava mexendo emocionalmente com ele. era visível tanto quanto a indiferença dele de que os outros percebessem isso. quando ele voltou ao sofá, achei que fosse a hora mais apropriada de tentar uma aproximação.

– oi!

– ah?... ah! oi... – respondeu ele desorientado.

– posso sentar com você?

– claro.

ele não estava interessado em mim. algo muito sério rondava a sua mente. todo o tempo em que passei o espionando ele se demonstrou um homem muito longe do lugar onde ele estava. mas não pude chegar à conclusão nenhuma sobre o que se tratava. mas o que ele fez é imperdoável e ele vai pagar.

– você é daqui? – continuei eu, com um sorriso no rosto.

– aham – sua indiferença estava começando a me irritar. mas me mantive concentrada.

– bacana... eu vim de santa catarina.

– morei muito tempo por lá...

eu, claro, já sabia disso. comecei a falar sobre cinema com ele. ele logo se empolgou e, pela primeira vez, o vi realmente focado no que fazia. ele falava com paixão do assunto. entusiasmado, divagava por todas as interpretações filosóficas de qualquer filme que eu citava, além de admirar as qualidades técnicas deles. fez algumas piadas. eu ri. odiava admitir que um idiota daquele estivesse me divertindo. mas eu estava determinada, mesmo assim.

quando o bar começou a fechar, ele me convidou para ir até seu apartamento tomar um vinho. ligou para um táxi e em cinco minutos estávamos lá. nunca cheguei a tomar vinho nenhum. ainda no corredor, começamos a nos agarrar. e ao abrir a porta de sua quitinete, fui carregada por ele até o colchão que ele tinha no chão. era um lugar bem pequeno. quase me deu pena dele. quase achei que ele já era fudido o suficiente
e que eu deveria perdoá-lo. quase.

fizemos sexo até as seis da manhã. foi bom. acabamos dormindo. era passado das quatro da tarde quando percebi que ele tinha se levantado. fingi que continuava dormindo para ver o que ele faria. simplesmente pôs a mesma roupa da noite anterior, deixou um bilhete ao meu lado e saiu. ele não tinha algo que eu pudesse roubar e sabia disso. me levantei em seguida e fui até a janela e o vi caminhando. estava novamente com a mente distante. me vesti com pressa e desci as escadas.

fui até o mercadorama da mariano torres correndo e peguei a caixa que eu tinha deixado no guarda-volumes. com cuidado, a trouxe de volta para a quitinete dele e a abri. tirei minha arma de dentro dela e a pus na minha bolsa. levei a caixa para o lixo reciclável do prédio. tirei novamente minha roupa. tentei deixá-la como estava na hora que ele saiu e fui para o banheiro.

o ouvi abrindo a porta e gritando “ei!”. retribuí da mesma forma, dei descarga e destranquei a porta. saí nua. pedi que me ajudasse a achar minha calcinha e já iria embora. ele tentou me fazer ficar. continuei agindo normalmente. acendi um cigarro. ele não lembrava meu nome. eu disse que era mônica. ele disse se chamava giovanni. decidi revelar que eu sabia quem ele era. ele se mantém calmo. acendo um cigarro pra ele e me abaixo pra me vestir.

ele pergunta do que mais eu sei. penso em contar tudo que eu sei. tudo que ele fez para que eu o odiasse tanto. mas não o faço. prefiro ser fria e rápida. saco a arma de dentro da bolsa, aponto e atiro. ele cai sangrando no chão e eu o deixo lá. tranco sua porta por fora e levo a chave comigo. deixo a chave cair na calçada e continuo fugindo.