terça-feira, 17 de julho de 2012

o mar


por guilherme bernardes

as ondas estavam calmas e eu fiquei ali admirando a água ir e vir. fiquei pensando nas coisas que deixei em curitiba e nas pessoas, que estavam cada uma em lugar, que não minha cidade, nem onde eu estava. todas elas fazendo algo provavelmente bom. talvez nem lembrando que eu existo. mas eu pensava nelas constantemente.

mesmo bebendo e falando besteiras, a imagem de seus corpos juntos ao meu rondava minha mente. primeiro uma de cada vez. analisei individualmente suas características. algumas são melhores que outras em certos atributos. seios, habilidade no boquete, facilidade em se excitar, o som dos gemidos, além de compatibilidade de suas personalidades com a minha, interesse no que eu tenho pra dizer e em ouvi-las contar suas vidas e algum passado que possamos ter em comum. são, de certa forma, bem diferentes entre si, mas todas fazem parte de mim.

então as imaginei juntas. tentei criar uma grande deusa sexual, pegando um pouco de cada uma e montando minha imagem de perfeição. dei um jeito de ignorar suas necessidades e passei a ser egocêntrico. imaginei apenas o meu prazer. somente a maneira como estavam ali para me satisfazer. e vi que não estava funcionando.

eu precisava estar ali pra elas tanto quanto elas pra mim. deitei na areia e comecei a apenas escutar o barulho do mar enquanto via o céu que estava particularmente cinza, mas não ameaçava chover ainda. nessa hora começou a dar certo.

estando ali pra elas eu me excitei. queria explorar cada centímetro de seus corpos, lembrando de minhas experiências com elas e sabendo do que gostavam. estávamos ligados — apenas dentro da minha cabeça. queria que pelo menos uma delas estivesse ali.

uma garrafa não consegue ser tão importante pra mim quanto qualquer uma dessas mulheres. porém uma bebida teria, de fato, me ajudado. só que preferi me embriagar apenas com o cheiro de sal e brisa e poluição que essa praia tinha. precisava de alguém. quis entrar na água e nadar um pouco. não era capaz de me enterrar sozinho na areia pra me fazer sentir completamente imerso em algo. andei devagar em direção ao mar e a cada onda tinha um aspecto único que me remetia a uma delas. ao ponto que elas quebravam e atingiam meu corpo, eu transformava sua respectiva força em sexo. em companhia.

não tirei minhas roupas. queria sentir o peso aumentando sobre meus ombros a medida que iam se encharcando. mergulhei e me entreguei de corpo e alma àquela sensação. me completei com as algas e a sujeira dali. prendi minha respiração escapando das memórias. fiquei concentrado apenas em sobreviver à força da natureza. abri os olhos, com os pulmões ainda cheios de ar, e eles arderam e eu não estava nem aí. nadei alguns instantes que me cansaram, de um modo que subi para respirar antes do que havia planejado. mais uma vez eu era derrotado.

decidi ficar nu. as peças de roupa estavam grudadas ao meu corpo e a medida que eu as arrancava sentia que com elas minha pele saía junto. sentia que eu era sugado pela pressão d’água que não queria que eu me livrasse delas. mas eu estava determinado. minha dor aumentava em todo o corpo. mergulhei novamente para tirar as roupas. usei minha força para rasgar os tecidos e acabei me arranhando junto. o grito era abafado por milhões de litros de água podre que eu misturava com meu próprio sangue. o sal entrava nas feridas e ardia, queimava meus músculos e abria novas cicatrizes.

quando terminei de me despir, não me senti nu. tudo ao meu redor tinha se tornado parte de mim. cada gota daquele mar era uma dessas mulheres. e eu estava cercado por todas elas. pensei que nunca mais sentiria nada parecido com solidão na vida.

o céu abriu e o sol apareceu tão forte que a água esquentou rapidamente. comigo ali dentro, senti que passei a cozinhar, mas o calor era tanto que, mais rápido do que a morte, que me era certa, foi como a água evaporou e formou novas nuvens. o mar onde eu estava secou, criando uma faixa de areia que tinha léguas de raio de onde eu estava. tudo virou deserto e me vi outra vez sozinho. minhas roupas não existiam mais e um frio tomou conta do ambiente enquanto começava a anoitecer.

corri para o lado que o sol se punha, tinha de voltar pra casa. não poderia estar muito longe. fui correndo desesperado, o cansaço doendo em cada músculo e cada cicatriz de meu corpo cortado por minhas próprias unhas.

começou a chover. com uma força que nunca tinha imaginado possível. eu corria o mais rápido que podia, e o mar voltava a se encher. sentia que parte da chuva era minha pele que tinha evaporado. não queria me afogar naquilo.

vi que alguém estava deitado na areia a alguns metros. fui ansioso ao seu encontro apenas para confirmar que era eu mesmo. desacordado e nu, envolto em sujeira e sangue e areia. o mar terminou de encher e as ondas faziam outra vez o mesmo barulho de antes. sentei ao meu lado preocupado com meu bem estar e me bati com toda a força que tinha. me gritei aos ouvidos que acordasse. disse o nome de todas aquelas mulheres e notei que houve alguma reação.

ao abrir os olhos, virei um só novamente. olhei para o céu cinza e minhas roupas intactas. queria alguém comigo. tomei a decisão de ficar pelado e esperar uma mulher passar. assim que passasse, lhe convidaria pra um mergulho, sem medo do frio e sem medo da morte. e, com sorte, muita vontade de contato humano.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

os ratos


por guilherme bernardes

odeio ratos.

são bichos nojentos e feios. não consigo suportar ter um perto de mim. mas toda vez que sou obrigado a pegar o último ligeirinho pro terminal do hauer, tenho que inverter o sentido pra pegar o alimentador, e sempre aparece pelo menos um. saem de baixo das plataformas dos biarticulados e vêm pegar restos de comida do chão e voltam correndo pras suas tocas.

tento evitar ficar encarando. não ia querer que um chegasse perto. prefiro que eles tenham medo. ainda bem que nunca nenhum deles desceu as escadas comigo. passo aquele túnel meio correndo, por causa do horário e por causa dos roedores malditos. é a única hora em que aceito que estejam a cima de mim. desde que estejamos separados por um monte de concreto, tudo bem.

lá pelas dez da noite, o terminal ainda está cheio. pessoal voltando das aulas, na maioria. então eles ficam escondidos. muita gente nem deve saber que eles estão lá. animais pacientes, eu admito. se saíssem antes da hora, algum escandaloso iria chamar um fiscal da urbs, um segurança, qualquer merda, pra avisar e pedir pra prefeitura tomar uma providência. eles só saem a noite. e num horário seguro. posso até considerar a esperteza deles. mas ainda assim os odeio. muito.

se eu pudesse, acabaria com todos eles. mas não tenho o empenho de o escandaloso ser eu. se eles não estiverem no meu campo de vista, foda-se. são só alguns segundos de aleatórias noites na semana que sou obrigado a lembrar da supérflua existência deles. sempre quis ter coragem suficiente pra eu mesmo eliminá-los um a um.

cheguei no hauer cansado. tinha sido um dia difícil. ainda tinha alguns minutos até meu próximo ônibus chegar e decidi tomar logo uma atitude. vi o primeiro e fui atrás dele. ele me percebeu como uma ameaça e se escondeu num buraco da plataforma. não pensei duas vezes. simplesmente mergulhei e entrei naquela toca. agora eu era um intruso no mundo deles. mas era um mundo que eu queria que fosse só meu.

lá dentro vi que ele não estava sozinho. uma ninhada enorme estava junto dele. todos eles me olhavam com raiva. não tive medo de nada. reconheci o filho da puta que me fez entrar ali e me estiquei para agarrá-lo. acho que ele nem acreditou no que estava acontecendo. quanta audácia desse estrangeiro!, ele deve ter pensado. não me importa. ele se debateu um pouco, tentou escapar, mas eu o encurralei. segurei-o com força e o trouxe até a boca. seus gritos eram de pavor. estava pedindo por ajuda. comecei a sentir que alguns estavam vindo em minha direção. achei melhor acabar com aquela barulheira. numa só dentada lhe arranquei a cabeça.

o berro cessou. mas o ataque, não. dezenas de ratos me mordiam as pernas, os braços, a barriga. mas nenhum conseguia chegar perto do meu rosto e sair ileso. era só se aproximar o suficiente e eu o mordia com toda a minha superioridade física, deixando-o desmembrado e morto. fui criando uma pilha deles ali embaixo. até que não restou mais nenhum. me senti satisfeito.

no dia seguinte precisei fazer a mesma rotina. cheguei no terminal e o fedor era insuportável. já era tarde e chovia. imaginei como aquilo devia estar durante o dia, no sol que fez. acho que só eu sabia de onde vinha aquilo.

terça-feira, 3 de julho de 2012

a higiene

por guilherme bernardes

hoje eu tô me sentindo sujo.

não é só porque eu
ainda não tomei banho nem
escovei os dentes
sujei a cozinha toda fritando uns bifes
e já bati uma punheta.

é mais que isso.

é se olhar no espelho e
não sentir nada além
de nojo.

repulsa.

bom saber que
mesmo que o julgado
seja eu, os
sentimentos ainda estão lá.
e eu ainda concordo com
eles.

faz eu me sentir mais eu mesmo.
que era tão acostumado à uma higiene adequada.
e que agora só consegue perceber
o quão preso está dentro do próprio chiqueiro.